sexta-feira, dezembro 08, 2006

You don´t understand

Sentei com o Kolk pra discutir os meus dados. Ele ainda está impressionado com a divergência que os dados de MS representam pra Teoria da Adaptação. Ele esperava ver excessos de verbos no infinitivo, porque eles são cognitivamente menos trabalhosos. O que eu mostrei pro orientador foram omissões de infinitivos na fala de MS.

Exemplos ajudam.
Nos telegramas havia infinitivos substituindo imperativos. Em vez de escrever "venda o meu Fusca pro João", "busque o meu pai no terminal", escreveram "vender Fusca João" e "buscar papai terminal".

Eu entendi, através dessa montanha de dados em que estou imersa, que os infinitivos precisam ser licenciados por preposições, auxiliares ou modais. Se um desses três bonitões estiver na frase, o infinitivo pode aparecer. Exemplos são bem-vindos:
Eu tenho dificuldade pra escrever
Eu vou escrever sozinho
Na China eu não podia entrar.

Adivinha o que MS disse!
Eu tenho dificuldade pra.
Eu vou sozinho.
China não podia.

Bizarro, eu sei.

Digamos que a primeira sentença tenha sido abortada. MS percebeu que eu tinha entendido o que ele quis dizer e não se deu o trabalho de completar a frase, já que a mensagem já tinha sido captada. Digamos que não há ambigüidade entre o verbo ir (movimentar-se no espaço de um local a outro) e o auxiliar, porque o contexto em que a frase foi dita aponta pra uma só interpretação. Falávamos de escrever, não de ir. Sobrou a última sentença. Já volto a ela.

Kolk e eu discutimos ferozmente sobre esses infinitivos.
O afásico quer comunicar, tem uma coisa importante pra te dizer, ele não pode se dar o luxo de ser mal-entendido. Se ele diz Eu vou sozinho, ele está se expondo a uma interpretação diferente daquilo que quer que seja entendido. Ele vai direto ao ponto, e o ponto é escrever, não ir. Se conjugar os verbos é difícil, ele usa o infinitivo. Você não está entendendo o que é a Adaptação. Quando alguém cai pela borda do navio e machuca o braço direito durante a queda e cai na água, a pessoa não pode movimentar o braço esquerdo como o movimentaria se estivesse usando os dois braços pra se manter acima da superfície da água. A pessoa precisa fazer outros movimentos pra não afundar. Ela precisa se adaptar.
Hm.
É possível usar infinitivos sozinhos em português? Se alguém perguntar o que você vai fazer hoje de tarde, você pode responder fazer compras?
Nhám... vou fazer compras.
Tá. Se alguém perguntar o que você está fazendo agora, é possível responder fazendo compras?
Hm, melhor.
Fine! Então não são os infinitivos, mas os gerúndios! Essa é a maneira que o afásico acha pra comunicar o que ele quer dizer, sem ter que conjugar os verbos. Os verbos vão aparecer, mas no infinitivo, ou gerúndio.
Hm... pelo menos saímos da fixação pelos infinitivos. Gerúndios também podem ser candidatos...

Voltemos ao último exemplo de MS. China não podia. Reparem que a ordem das palavras não é a ordem canônica sujeito-verbo-objeto e os adjuntos depois. O que ele faz é uma inversão da "ordem natural". O que ele faz é uma construção tópico-comentário. Ele puxa um tópico (assunto) pra frente da sentença e depois faz um comentário sobre ele. A primeira vez que eu notei esse tipo de estrutura foi nos telegramas. Exemplo.
Texto: posso entregar semana seguinte?
Estou começando a achar que a adaptação do MS não é no nível do verbo, mas da sentença, e que os infinitivos e gerúndios que e o Kolk quer ver estão vestidos de tópico-comentário.

>suspiro profundo<
Lembro do livro do Werner Heisenberg, "Der Teil und das Ganze". Assim como o Renato, que me emprestou o livro, me diverti muito com a leitura e o tenho como um dos preferidos na minha estante mental de livros bacanas. Heisenberg quer mostrar que fazer ciência é conversar, dialogar, brigar pela razão. As discussões dos físicos atômicos na mesa do café da manhã, antes de uma conferência internacional está viva na minha memória. Albert Einstein levanta e propõe um problema complicado que logo é discutido, rebatido, refutado e descartado. Na manhã seguinte, ele levanta da cadeira posicionada na cabeceira da mesa, bate a colherinha na xícara, pedindo a atenção de todos. Propõe um problema mais cabeludo ainda. Coçar de cabeças, muxoxos e murmúrios, mãos no queixo e novamente acontecem discussões acaloradas com argumentos acachapantes.

Agora preciso dizer isso tudo que joguei aqui ao Kolk!

2 comentários:

Renato Basso disse...

Oi Lou!
Bom, eu não conheço a teoria da adaptação do nosso amigo com poucas vogais no nome, mas me parece bem esquisito você centrar uma pesquisa que tem como fundo uma teoria que diz basicamente (eu acho) "você tentar fazer as coisas que você fazia antes, e as coisas que você quer fazer, com os recursos que tem agora", num item lexical ou numa classe de palavras... não acho interessante, mas talvez porque eu realmente desconheça na íntegra a tal da teoria, buscar numa determinada classe de palavras, ou em coisas que acontecem em apenas uma classe de palavras, as famosas adpatações ou marcas de adaptações...
Eu sou muito mais partidário da sua formulação final: é no nível da sentença que devemos olhar essas coisas...
Aliás, o problema pode ser ainda mais embaixo...
Fico numa encruzilhada por não conhecer a tal da teoria da adaptação (acho que vou ter que aprender esse treco...): o que exatamente um afásico busca adaptar? 1) uma enunciado lingüístico?, uma proposição?, um conteúdo verifuncional?; ou 2) um ato de fala?, uma intenção comunicativa?.
As duas coisas não são dissociadas: um ato lingüístico só pode ser realizado por uma materialidade lingüística (proposição) que o carregue. Mas com o que eu, se fosse afásico..., me preocuparia em primeiro lugar? Em buscar fazer com que meu ato de fala ficasse o mais claro possível?, ou a proposição que o carrega?
Ou seja: eu daria a entender, por quais meios fosse possível, que eu quero que você me passe o sal? ou me preocuparia em dizer o melhor possível me passe o sal?
A depender da resposta, você vai exigir coisas diferentes da teoria. Perceba que, se o afásico se interesse mais pelo ato de fala, é bobagem você centrar-se no estudo de uma classe de palavras... sabemos que o mesmo ato de fala pode ser performado de inúmeras maneiras.
(isso não quer dizer que seja desinteressante à luz da teoria da adaptação ver o que acontece com os verbos, por exemplo. Mas o que eu digo é que estudar os verbos, se eu estiver correto, não ajudaria a avançar a teoria da adaptação).
Se, por outro, o afásico está interessado em dizer corretamente uma sentença, e a preocupação com o ato de é secundário, então o que eu disse acima se inverte...
Minha posição não é nem uma, nem outra... é no meio... acho que o afásico tenta (eu pelo menos tentaria) juntar as duas estratégias: performar o ato de fala da melhor maneira possível, com um enunciado o melhor possível. Isso também implica em não se centrar em uma classe de palavras...

Não sei por que, mas acho que um texto que ajuda é "A Nice Derrangement of Epithaphs" (não sei se é assim que escreve) do Davidson...

É isso aí!
Um beijão e até mais!

iglou disse...

Renato!!!
É por essas e outras que eu sou sua fã! Obrigada por me acalmar em português (discutir teoria em inglês pode ser claudicante) e confirmar as minhas suspeitas de que o Kolk, apesar de dizer que está mais preocupado com o processamento da linguagem, parece olhar mais atentamente pro produto dela.

Quanto à tua pergunta sobre o que o afásico adapta, eu posso responder que depende. MS, por exemplo, se comunica através de gestos, mímicas, encenações e fala telegráfica. Pra ele, passar a mensagem parece ser mais importante do que formular bem a proposição.
Perguntei ao Kolk se essa tal da adaptação era uma coisa espontânea do afásico, se ele acha as suas estratégias adaptativas de maneira natural. Ele respondeu que não, que uma senhora afásica, por exemplo, tava sempre tentando formular sentenças completas, com todos os verbos conjugados bonitinhos. Como um aluno de língua estrangeira, que fala devagar, buscando a palavra seguinte, olhando pra tua cara com um misto de alívio e dúvida. Só que ela emperrava nos verbos, e não conseguia conjugá-los apropriadamente e voltava pro começo da sentença, como um disco riscado. Pra essa senhorinha eles ensinaram a fala telegráfica, com o verbo não-finito no final. Eu não sei holandês, mas como o exemplo era pareceido em alemão, vai em alemão mesmo:
Ich mache Kuchen
Eu faço bolo
tava difícil de sair, então ensinaram a estrutura
Kuchen machen
fazer bolo
com o infinitivo no final e ela resistiu no começo, mas se adaptou no final.
Credo, parece que eu tô te contando de alguém que entrou pra igreja do Reino de Deus!!!!

Depois que eu ler a tua dissertação, eu leio o Davidson. As coisas precisam seguir uma certa ordem...Obrigada pela referência!
Abraço!