sexta-feira, junho 01, 2007

Ciclismo anárquico

Lembra daquele desenho animado do Pateta, que num lindo dia de sol e céu azul sai de casa, vai até o carro assoviando, todo contente, e quando gira a chave do carro na porta, começa a se transformar em monstro? Atrás do volante, eu também posso ser assim: não buzino, mas corto, costuro, não dou passagem, acelero e faço curvas em alta velocidade. Sim, eu tenho consciência do meu estilo levemente agressivo.

Mudei pra bicicleta, que não atinge velocidades tão altas como um carro, e portanto não estimularia tantas loucuras no trânsito. Mas com uma bicicleta no trânsito brasileiro, a briga é por espaço e visibilidade. Ciclista anda nas ruas, porque não há ciclovias ou ciclofaixas. E quando há ciclofaixas em parques da cidade, há sempre pedestres correndo ou caminhando no espaço reservado para os ciclistas. Eu tomava o meu espaço nas ruas, sempre usando roupas de cores chamativas, usando capacete e dando sinal que ia mudar de direção. Reparei que, depois de assumir a identidade de ciclista, me acalmei atrás do volante. Mas mesmo assim me envolvi em um acidente de bicicleta que eu mesma causei: a descida na ladeira em Campinas tava boa, eu não vi o carro cinza-cor-de-asfalto vindo atrás de mim, fui cruzar a rua, freiamos loucamente e tomei um chão bem-servido. Ciclismo imprudente.

Vim pra Holanda, país das bicicletas. Aqui a bicicleta é respeitada por motoristas e pedestres, e há ciclovias e ciclofaixas em todas as ruas, exceto em bolsões residenciais. Na maioria das vezes, a calçada tem metade da largura da ciclovia, demonstrando como o ciclista é mais valorizado que o pedestre. As ciclovias ou ciclofaixas têm uma mão de direção, que corresponde à mão dos carros. Se um ciclista quiser andar um trecho curto (uma quadra, por exemplo) na contra-mão, pra não ter que cruzar a rua duas vezes, ele anda pela calçada. E o pedestre que se esprema. Os tempos do farol para ciclista são diferentes que os tempos do farol pra pedestre. Por motivos óbvios, o farol pra ciclista fica aberto por mais tempo que o farol pra pedestre. Mas, veja que aberração: existe uma rotatória com 5 faróis (!) em Nijmegen. A bicicleta dá a volta completa na rotatória numa "onda verde". O pedestre não consegue realizar tal façanha. Tudo isso pra mostrar que o ciclista é rei nos Países Baixos. Os motoristas sempre olham pra ciclovia, antes de fazer uma curva. Se vier ciclista, eles param e esperam.

Me acostumei a sempre ter preferência, a sempre ter razão, quando pedalando a minha bicicleta. Me acostumei com os tempos dos faróis, e sei que há um longo minuto em que todos têm sinal vermelho. Quando calculo o tempo do farol, considero esse tempo de vermelho pra todos e vou. Atravesso faróis vermelhos quando não vem carro e não fico esperando o farol verde. Confio que os motoristas estão me vendo e não estão dispostos a me atropelar. Quem é que quer se envolver em acidentes? Pois é, mas tenho consciência de que, pra evitar acidentes, algumas regras básicas devem ser seguidas. Aqui, a regra mais básica é: cada um tem a sua vez.

Aconteceu de eu não dar a vez prum carro no farol. Ciclismo anárquico. Novamente, eu tava na descida, no embalo, em alta velocidade, e farol tava fechando pra mim. Fechou, mas eu continuei. O carro acelerou, eu abri pra direita, me distanciando do carro e tive que pular a guia da ilha de trânsito. A roda da frente foi, a de trás bateu, seca, no canto da guia. Achei que um raio tinha estourado, desalinhando a roda, fazendo com que o aro batesse no freio. Parei a bicicleta, lá longe, depois que o motorista tinha passado por mim, buzinando. O aro estava deformado. Abri o freio, mas ainda assim tava difícil pedalar. Tirei a pastilha do freio e segui pra academia de escalada, sentindo tum tum tum tum tum tum tum tum.

Tive que comprar uma roda nova. O defeito era só o aro, e um aro é baratinho, mas eu duvido que eu tenha capacidade de botar os raios no aro e ter como resultado final uma roda que gira pra frente, e não pros lados. Fora isso, não tenho a ferramenta pra mexer na catraca. Mais uma ida à bicicletaria na Holanda. Mais uma conta alta pra pagar: 50 euros (lembrando que a bicicleta toda custou 85).

A proporção de bicicletas por holandês é de 2 pra 1. Sim, em média, cada habitante tem duas bicicletas: uma urbana para o dia-a-dia e uma outra (speed, mountainbike ou dobrável). Na maioria dos casos, a bicicleta urbana faz barulho, foi pintada pelo dono de todas as cores que ele gostava na infância e é muito velha. Não é descuido, não. Tanto as bicicletas em si, como os serviços de conserto e manutenção são muito caros aqui. Por isso as pessoas ficam com o que têm.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ei... adorei seus relatos... tudo muito lindo e sensível, impossível não se por no seu lugar quando vc faz sua narrativa... rs... beijo