terça-feira, julho 31, 2007

Um mês depois

Um mês sem usar a perna direita causa atrofia nos músculos da perna e dores na coluna.
O pé ainda não voltou à forma normal, os artelhos ainda estão inchados, o tornozelo todo está sempre mais quente que o resto do pé, e não consigo movimentar muita coisa.
Os grampos saíram faz 11 dias, a pele está escamando.

segunda-feira, julho 30, 2007

Emagreci

4kg desde o acidente e suspeito que a maioria disso aí seja massa muscular na perna direita, que eu continuo perdendo gradativamente. Não vejo a hora de poder fazer fisioterapia!

sábado, julho 28, 2007

Sonhei

que eu andava de bicicleta por Nijmegen, pensando: que legal, estou pedalando antes mesmo de reaprender a andar sobre os dois pés!

Na primeira noite em casa, depois do hospital, sonhei que eu fui na farmácia caminhando, com o pé engessado, porque eu tinha esquecido que não podia pôr o pé no chão.

Sonhar que estou caminhando ou pedalando me lembra os meus sonhos de adolescente, em que eu voava. Pois é, caminhar e pedalar são agora tão especiais quanto voar: só em sonho.

quinta-feira, julho 26, 2007

Anatomia


Senhoras e senhores, orgulhosamente lhes apresento o pé.
Nestas ilustrações, retiradas de um livro de anatomia para artistas (Anatomie für Künstler), todas as ocorrências do Talus estão marcadas com o número 1. Ele é o primeiro osso do pé, porque faz a ligação entre perna e pé. Na imagem abaixo, o pé é visto de cima.

Na imagem seguinte, o pé é visto de baixo.
Nas próximas imagens, retiradas de um dicionário de imagens (Bilderlexikon), o Talus está identificado como Sprungbein. Na imagem abaixo, trata-se do segundo osso, contando de baixo para cima.Esta última imagem foi adicionada pra mostrar qual não é o meu alívio por terem feito os cortes no meu pé (pra operar) na parte traseira do pé. Olha o tanto de coisa importante que eles teriam que cortar, se atacassem o pé de cima. Já sinto os dedos dos pés, mas a sola e a parte que envolve os dois ossos sobressalentes - como chamam? Knöchel, em alemão - ainda está meio sem sentido. A sensação é como se não fosse a minha pele, mas uma camada de couro.
Sinto muito, mas a minha vida de agora gira em torno desse meu pé quebrado...


quarta-feira, julho 25, 2007

De volta ao trabalho

Com o laptop, a vontade de trabalhar voltou. A minha mãe tinha um cabo de internet quilométrico dando sopa, e uma entrada no modem sobrando. O computador dela está exatamente abaixo do meu quarto. Não furamos o teto/ chão para conectar o meu quarto com o quarto de baixo, não. Abrimos as duas janelas e ... Rapunzel, jogue-me seu cabo! Talvez dê pra identificar um emaranhado de cabo cinza na foto.
Estou super bem instalada. Posso trabalhar de pernas pro ar! Isso que tá no meu pé é uma compressa de ricota. Simples: abre-se um pano de prato, taca-se o conteúdo do maior (e mais barato) pote de ricota que há no supermercado sobre o pano de prato, fecha-se o pano de prato, como um envelope. A paciente precisa ser advertida instantes antes da compressa tocar a pele quente do pé, porque o choque de temperaturas é grande.

terça-feira, julho 24, 2007

Longa viagem

Com a Pequena Giant desmontada e o meu pé em cima de uma almofada de um sofá incompleto, fomos a Nijmegen. Eu tinha vindo pra Bremen com 3 mudas de roupa, sem laptop, sem a papelada do seguro de saúde e sem as coisas do banco. Além de não poder trabalhar, eu não sabia como eu ia viver.
Passei a maior parte do dia sentada, o que já é uma mudança. Até agora, eu passava a maior parte do tempo deitada. Foram 3 horas e meia pra ir e um pouco mais pra voltar.
Em Nijmegen, Kaleem estava cozinhando quando eu cheguei. Ele queria me ver. Boti veio em seguida, sentou por 10 minutos, depois voltou ao trabalho chato e exploratório. Hayat veio se despedir. Logo ela volta para o Irã, pra defender a tese dela.
Fiquei tão feliz de ver esse povo depois de tanto tempo!

Medicina caseira

Minha mãe conhece as plantas e o seu poder de cura. Esta é a flor de confrei (português), comfrey (inglês), ou Beinwell (alemão), ou ainda Symphyton (latim). As folhas de confrei são comumente usadas para se fazer chá, mas a ingestão (por tempo prolongado) via oral desta planta pode causar câncer.
Minha mãe então fez uma pomada de confrei. Secou e amassou as folhas, cozinhou a raiz, foi no açougueiro e buscou banha de porco, misturou tudo, distribuiu em potinhos etiquetados e os colocou na geladeira.
Todo dia ela passa pomada de confrei no meu pé direito, e antes de tomar banho, fazemos uma compressa de ricota. Porque a ricota mantém a temperatura fria por meia hora. E o pé inchado precisa ser resfriado de tempos em tempos, pra desinchar. Gelo é frio demais, o ideal é que a "temperatura de geladeira" seja constante. E tome ricota.
O meu pé não tem chulé: ele cheira a Baconzitos quando está empapado de pomada e a leite azedo quando que está envolto em compressas de ricota.

sábado, julho 21, 2007

No mesmo dia

Dia 30 de junho o avião que trazia a minha vó de São Paulo pra Porto Alegre teve 6 horas de atraso. Caos aéreo. O meu tio e a minha tia tinham ido de Gramado a Porto Alegre, para buscá-la no aeroporto. Ficaram esperando por 6 horas, com fome, sono e impaciência.

Na madrugada do dia 1 de julho, o meu tio, subindo a serra gaúcha, bate o carro numa pedra no meio do caminho. Ninguém quebrou nada, mas a minha vó ainda sente as dores do cinto de segurança espremendo-lhe o corpo.

Na tarde do dia 1 de julho, Pequena Lou sobe numa árvore, sem pensar em como descer. Pendura-se no galho mais baixo porque pensa que a escalada indoor praticada na Holanda lhe dera experiência e força suficientes para chegar no chão dando risada. Cai entre 2 e 3m e quebra o Talus.

Na noite do dia 1 de julho, uma moça de 32 anos se diverte numa festa de casamento, jogando um jogo meio doido. Um dos convidados lhe pula em cima do tendão de Aquiles.

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Por volta do meio-dia do dia 13 de julho, uma sexta-feira, as três ocupantes do quarto 28 da Unfallstation 7 do hospital Bremen Mitte deixam o prédio e vão para casa. Nos despedimos com apertos de mão e abraços calorosos, desejando nunca mais nos encontrarmos neste lugar.

E agora chega de estórias de hospital. Bola pra frente, que a vida precisa continuar.

Frau Teschendorff

Ela estava com o namorado novo numa festa de casamento, em Stuttgart, jogando um jogo em que era preciso pular. Um cara pulou (de sapato) em cima do tendão de Aquiles dela. Ela suportou a dor, mas insistiu pra que voltassem pra Bremen no dia seguinte. O dia seguinte foi o dia em que estourou a greve dos condutores de trem. Ela chegou à conclusão de que era melhor não mexer mais o pé direito. A dor foi aumentando. Voltaram pra Bremen na terça, e foram de clínica em clínica, mas não conseguiram consultas antes de outubro. Dez dias depois do acidente, ela apareceu na Emergência do hospital de Bremen e foi submetida à cirurgia no mesmo dia.

Ela me ensinou que dá pra prensar qualquer coisa pequena (como um livro ou uma toalha) embaixo do braço e andar de muletas. Além das muletas, ela precisa usar uma bota de astronauta, chamada Achillo-walker, e teve a sola do sapato que calça o pé esquerdo aumentada em 4 cm. O difícil foi entrar na bota, porque ela tinha ficado muito tempo sem mexer o pé, os músculos atrofiaram, os tendões enrijeceram e ela não conseguia mais tirar a forma de ponta-de-pé-de-bailarina do pé direito. Demorou um dia inteiro pra ela conseguir dobrar os dedos do pé, de maneira que conseguisse pisar sobre este pé. No dia em que recebeu alta, aprendeu a andar com o Achillo-walker.

sexta-feira, julho 20, 2007

Frau Kirschke-Ast

Ela estava em Texel, Holanda, pedalando uma speed com uma mão só. Não mão direita ela carregava dois quilos de queijo e alguns ovos, na mão esquerda estava o guidão. Ia pela ciclovia, quando cruzou com um holandês que se virou para o seu grupo que vinha atrás e avisou que vinha uma ciclista. Ela freiou. Com uma mão. A roda da frente travou, como era de se esperar, o peso dela foi jogado para a frente, e ela voou sobre a bicicleta para a frente - como era de se esperar. Caiu sobre os dois cotovelos que quebraram. Este foi o último dia de férias.

Frau Kirschke-Ast entrou no nosso quarto num momento ruim. Ela estava com raiva de si mesma, por ter causado o próprio acidente, estava com raiva das enfermeiras alemãs que não estavam em volta dela o tempo todo, como havia sido na Holanda, e estava com pena ou raiva de mim, que chorava aos baldes. Eu tinha voltado da cirurgia, e os nervos bloqueados pela anestesia estavam acordando e me causando dor. Quando fui abrir a boca pra dizer que a minha perna toda tava tremendo de dor, só me saíram lágrimas, e depois disso não consegui mais parar de chorar, soluçar, respirar audivelmente. Aí ainda vieram os meus pais, a injeção contra a dor e pronto, demorei pra me acalmar. Péssimas condições pra Frau Kirschke-Ast se entrosar no quarto em que permaneceria por mais uma semana.

Frau Kirschke-Ast insistia no seu sobrenome completo e corrigia todo mundo que a chamava de Frau Kirschke. Parece coisa de velho, e ela é muito mais velha que parece. Tem 58 anos, está com o corpo nos trinques, tem poucos cabelos brancos, faz afro-dança, yoga, tai-chi e lutou tae kown do por muito tempo. Tem uma filha de 33 anos, um neto de poucos meses, foi politicamente engajada, ocupou casas, militou pela esquerda e hoje é feminista e trabalha num núcleo de proteção à mulher (pelo que entendi, o foco são casos de abuso sexual). Insistia pra que uma mulher a acompanhasse ao banheiro ao invés de Sharam, o enfermeiro turco, e que uma mulher a lavasse às 7 da manhã, ao invés de Klaus, o enfermeiro com escoleose. Pedia comida vegetariana e logo aprendeu que isso é uma das coisas que não se faz em hospital.

Ela foi operada na mesma tarde em que chegou, e passou o primeiro dia completamente dependente. Precisava de alguém que a acompanhasse ao banheiro, que lhe desse comida, lhe coçasse o nariz, que lhe desse água. Mas logo ela percebeu que podia movimentar os dedos da mão e pegar coisas. No segundo dia, dei uma laranja cortada em pedaços, numa tigela pra ela. Lou, schau mal! Olhei. Ela tinha espetado um pedaço de laranja no garfo e estava levando a boca à laranja. Impressionante. No dia seguinte, ela conseguia conduzir coisas pequenas, como cerejas e até as pílulas de todo dia à boca. Já ia sozinha ao banheiro, mas ainda precisava de ajuda embaixo da ducha. No fim, conseguia segurar o telefone e conversar com alguém que não estava ali. Acompanhar os progressos dessa mulher foi uma aventura.

quinta-feira, julho 19, 2007

Frau Welsch

Frau Welsch resolveu sair da cadeira de rodas, não conseguiu esticar bem as pernas para manter-se em pé, caiu e quebrou os ossos da mão esquerda e da bacia. Quando eu cheguei, ela já estava no hospital fazia 10 semanas. O marido de 81 anos parecia ser uma geração mais novo que ela, e vinha todo dia pelo menos uma vez. Conversava mais com a gente que com a esposa, mas sempre trazia uma comida que o velho casal tinha combinado no dia anterior.

Frau Welsch tem 79 anos, mas parece uma centenária. A escoleose a encolheu em 13 centímetros, a senilidade lhe confunde a noção do tempo e espaço. Ela sobreviveu à Guerra, e isso se torna visível nas coisas que ela guarda por impulso, reflexo ou costume. Não é só o pão do café da manhã que ela desembrulha de noite, ou pedaços de bolo que ela guarda para o marido. Não, o marido, Herr Welsch, disse que já encontrou mais de mil euros distribuídos em livros. Euros, não Marcos, ou seja, não é coisa antiga.

Frau Welsch tem um humor de marinheiro, responde sempre com a testa enrugada, aguardando a risada do outro. O marido pergunta se deve trazer pão com salame. Ja. Umas cinco fatias? Mindestens! (no mínimo). Frau Welsch informa a enfermeira que quer voltar pra cama. E o que eu ganho com isso? Você pode deitar comigo. Kuscheln.

Frau Welsch estava sarando das feridas quando eu cheguei, e precisava de ajuda para levantar-se da cama. Além de não ter as forças pra pôr-se de pé, ela não conseguia endireitar o corpo. Ela tinha medo de cair, mesmo quando estava sentada na cadeira de rodas. Pouco antes de sair, ela já conseguia mover-se da cama para a cadeira de rodas, com a ajuda de uma enfermeira que a segurava com um parceiro de dança. Samba tanzen, Frau Welsch!

No meio da noite, ela acorda: Willy, mach mal Kaffee! Frau Welsch, estamos no hospital, e é de noite. Na noite seguinte, enquanto observo uma coloração amarelada nas nuvens, ela pergunta quando servirão o café da manhã. Quando o Herr Welsch chega na manhã seguinte, ela lhe pede para acertar o seu relógio. Mas o seu relógio está certo. Nein, Willy, hier geht die Zeit anders. (aqui o tempo anda diferente). No dia em que sairia do hospital e iria pra clínica de rehabilitação, ela amanheceu sentadinha na beirada da cama. Mas o que é isso, Frau Welsch? Estou esperando o meu marido. Ele foi buscar pãozinho. Frau Welsch, estamos no hospital. Ach, du lieber Gott! Porque a senhora caiu e quebrou o braço. (Olha para a mão enfaixada, assustada) Du meine Güte!

quarta-feira, julho 18, 2007

Frau Riebe

Frau Riebe estava em casa, conversando com o marido perto da escada, se virou, perdeu o equilíbrio e caiu. Assim, do nada, sem causa ou razão explícita. Quebrou a terceira vértebra, que foi reposta por uma placa de titânio. Cortaram também um pedaço do osso da bacia e o colocaram na fratura, de modo que ela tem cicatrizes na barriga e no pescoço. Sim, a intervenção foi frontal: pelo pescoço, não pela nuca.
Quando eu cheguei, ela já tinha sido operada, estava usando aquele trambolho no pescoço e indo pra fisioterapia todo dia das 10:45 às 11:15. Uma dia ela voltou pelas escadas. Subir os degraus sem ver o chão foi a primeira grande conquista dessa mulher de quase 60 anos. Toda vez que ela via um pobre coitado no corredor com a cabeça cheia de cicatrizes, preso a máquinas ou gritando de dor, ela me dizia que eu devia dar graças a Deus que no meu caso era só o pé.

Frau Riebe era engenheira de desenho de avião, perdeu o emprego, virou enfermeira e foi cuidar de idosos em asilos. Uma das enfermeiras do hospital tinha sido colega de trabalho dela. Era a Frau Riebe quem tinha mais jeito com a Frau Welsch que queria sair da cama, que perguntava quando viria o café da manhã em pleno pôr-do-sol, que queria telefonar pra filha que não viria. Era ela quem jubilava de alegria ao ver a Frau Welsch dando seus passos tortos em direção à cadeira de rodas e sugeria que as duas almoçassem sentadas na mesa, não na cama. Foi a Frau Riebe quem desviou as minhas atenções nas minhas saudades de tudo para as perguntas dela sobre o Brasil. Wie ist das in Brasilien?

Eu fui operada no dia em que ela teve alta. Quando voltei da cirurgia, um ursinho e um cartão esperavam por mim, no lugar da Frau Riebe: Alles wird gut.

Na minha cuca

O mundo continua a girar, pessoas continuam nascendo, morrendo, chorando e sorrindo. Um avião da TAM atravessou a Washington Luis e explodiu um posto de gasolina. Penso nas pessoas que foram pegas de surpresa por mais esta tragédia e espero por notícias de Vila Campo Grande. Espero não ser surpreendida com notícias amargas.
O mundo lá fora vem até mim através dos outros, e isso começou no hospital, quando a Frau Riebe era a única do nosso quarto que conseguia andar e nos trazia notícias dos corredores da Station 7.
O meu mundo agora acontece na minha cabeça, e não ultrapassa os limites deste jardim. Ainda não consigo pensar em trabalho, preposições, afasia e essas coisas cabeludas. Só sentar numa cadeira com o pé acima da cintura já é cansativo pra mim. Imagine então ler as críticas ao meu artigo rejeitado...
O meu mundo se alimenta de memórias, e as memórias são do hospital.

terça-feira, julho 17, 2007

Companhia





Eles têm bafo, carrapatos e soltam pêlos, mas o motorzinho que ronrona faz com que eu os aceite no meu colo.

Meu pé

Na perna esquerda eu preciso usar uma meia pra previnir trombose. A meia eu trouxe do hospital e ninguém reclamou.
Se você tem nojo, não olhe!
Foram dois cortes, que não foram costurados, mas grampeados.

No hospital

O som da sirene da ambulância foi - pela primeira vez na vida - interpretado como um alívio. Foi difícil tirar a bota, ainda mais porque eu lhes proibi de meter a tesoura no meu melhor calçado. Um osso tinha se deslocado, estava despontando pra fora, mas não havia feridas abertas.
Tiraram o sapato e puxaram o pé e o joelho em direções contrárias, praquele osso voltar ao seu lugar.
Me espantei com o meu silêncio.
No hospital, ninguém conseguia entender o que uma moça de 29 anos faz numa árvore. Ainda tentaram fazer com que a estória fizesse sentido: tava colhendo cerejas? (O pé de cereja é conhecido por ser frágil e aí estaria subentendido que o galho da cerejeira quebrou sob o meu peso). Não. Eu subi na árvore porque eu adoro subir em árvores.

O pé foi inchando, as cores dos hematomas foram se alterando, a minha coluna foi se cansando.A minha cama era a da janela. Na cama do meio estiveram Frau Riebe e depois Frau Kirschke-Ast, e na cama da ponta de lá estiveram Frau Welsch e Frau Teschendorff. Cada uma delas uma estória interessante.

Logo no segundo dia, me prometeram me ensinar a usar as muletas, pra eu poder ir ao banheiro sozinha, e não ter que pedir pra alguém me trazer a comadre, fazer xixi ao lado de alguém que esperava eu terminar e depois me contorcer pra fazer bom uso do papel higiênico.Dia 02, o dia da minha volta de trem com bike para Nijmegen, estoura a greve dos condutores de trem na Alemanha. Não presenciei essa greve.

Quase uma semana depois da minha entrada no hospital, na sexta, fui operada. A anestesia foi na espinha dorsal, e no estômago já nadavam as pílulas pra dormir. Perguntaram se eu conseguia dormir de barriga pra baixo, e me viraram de costas pra cima.
Acordei ouvindo música, mas não lembro de eles terem colocado os fones nos meus ouvidos. Perguntei quanto tempo tinha durado a operação, e o anestesista, plantado do meu lado, respondeu que 2 horas.
Me levaram pro quarto, onde cheguei sorrindo. O cirugião veio atrás, pra abrir o gesso, já que o pé ia inchar de novo e precisava de espaço. Não reconheci o cirurgião. Perguntei quantos parafusos ele tinha colocado no meu pé, ele respondeu: 8 + 2.
Oito para os estilhaços, dois para juntar o osso que eles serraram, pra alcançar o Talus.

Enquanto as minhas vizinhas de quarto faziam progressos rápidos e visíveis, iam e vinham, eu recebia drenagem linfática, compressas de ricota no pé inchado e precisava me concentrar muito pra mover os dedos do pé.

Passei 13 dias no hospital Bremen Mitte, e sinto saudades das enfermeiras, estagiários, fisioterapeutas, médicos, ducha e banheiro para deficientes. Não sinto falta da rotina do hospital, dos horários certos, da incerteza sobre o futuro do meu pé e dos meus planos. Acho que nunca chorei tanto de uma vez só. Eu sentia saudades de tudo: da praia, da montanha, da Av. Nossa Senhora Sabará e o seu trânsito parado, a resignação estampada nos rostos daqueles que esperam pelo ônibus, o sol se pondo na linha do horizonte poluído, o lixo no rio Pinheiros. Eu sentia falta das pessoas que riram comigo, eu queria ver um céu estrelado por trás das nuvens de Bremen, eu queria que alguém segurasse a minha mãozinha.

A árvore

Voltei de um passeio de mais ou menos 5 km, em que peguei sol e chuva, e fui acompanhada por um deslumbrante arco-íris. Fui até o terraço, desci os degraus e olhei pro imenso jardim. Meus pés me levaram atá a minha árvore preferida, a Blutbuche. Os galhos mais baixos estavam muito altos, mas havia uma corda ali, pela qual eu subi. Não lembrava da corda, deve ter sido colocada ali pelo Philip. Ainda pensei se não era melhor tirar as botas de caminhada, porque a sola lisa do pé tem mais aderência, essas coisas. Subi assim mesmo.

Fui até lá em cima. O tronco e os galhos estavam secos, apesar da chuva. No topo, deitei numa bifurcação de galhos, abracei o tronco com as pernas e escutei o que havia pra ouvir: pássaros contentes, pássaros agitados, o vento nas folhas, a calmaria da tarde de domingo.

Desci devagar, com cuidado, até o galho mais baixo. Anos atrás, esse galho era usado para botar as mãos, e Philip e eu descíamos com os pés num galho mais baixo, paralelo a este. Deve ter caído de velho.
Botei as duas mãos paralelas sobre o galho, deixei o corpo dependurado. As mãos não envolviam o galho, o que ameaçava um pouco a minha segurança. A mão da esquerda ia, a da direita seguia, e aos poucos eu ia me movimentando pra longe do tronco. Enquanto as mãos se moviam poucos centímetros, as pernas soltas pendulavam, de maneira que entrei num ritmo difícil de mudar. Um pequeno galho com folhas saía do galho em que eu estava pendurada. Eu não tive forças pra levantar a mão e contornar o galho e as folhas. Também não tive forças pra me manter lá em cima, segurando um monte de folhas lisas sobre o galho.

Todo o peso do meu corpo caiu (entre 2 e 3 m) sobre o pé direito. Este é o meu pai, embaixo do local onde eu caí.

Os preparativos

Fiz reserva em albergue em Madrid, estudei o mapa da cidade, localizei o museu do Prado, procurei por conexões entre a capital e Granada, a mais ou menos 400km ao sul, liguei pro Esteves.
Cê vai gostar daqui. Eu tô morando numa caverna.
Esteves! Cê tá vivendo como um urso!!!!
Nãããão, tem porta aqui na entrada da caverna!

Eu tinha uma lista dos latino-americanos bolseiros Alban e escrevi pra todo mundo que tava em Portugal. No mesmo dia, recebi 10 mensagens: mensagens que não foram encaminhadas, porque o endereço estava errado. Hm.
No dia seguinte, recebi 5 mensagens: ah, que pena, eu gostava de te mostrar a cidade, mas não posso, porque blá blá.
Mais um dia, uma mensagem: você é bem-vinda.
De pouquinho em pouquinho, 3 homens me ofereceram um lugar pra dormir e uma moça se ofereceu pra me mostrar a cidade.

Perguntei pro Luís, que morou um ano em Portugal, de qual lugar ele mais sentia saudade, e a resposta foi uma lista de lugares interessantes. Estudei o mapa de Portugal, olhei as fotos que os meus pais tinham tirado de lá, quando por lá passaram, ganhei um mapa de Espanha e Portugal da Julia e do Philip.

A mochila seria maior que de costume, porque eu precisaria levar saco de dormir e toalha (sobrevivência na caverna e pra não incomodar os meus anfitriões).

Tudo preparado, mas tinha uma árvore no meio do caminho.

O plano

O plano era ir pra Alemanha no dia 27 de junho, de bike, esperar o tempo passar, curtir a casa vazia, e buscar os meus pais no aeroporto no dia 30. Eles voltariam de uma viagem de 1 mês no Brasil, onde desbravaram, separados, o Mato Grosso e Amazonas.
A minha passagem de trem de volta para a Holanda já estava comprada para o dia 2, e eu ia comprar bilhete para a bicicleta com antecedência, não tentaria entrar num ICE de bike e chegaria em Nijmegen de noite.
No dia 4 de julho eu embarcaria num avião com destino a Madrid, onde eu passaria uma noite, depois seguiria para Granada, passar uns dias com o Esteves.
Dia 9 eu estaria em Madrid de novo, para pegar um avião a Porto, Portugal. Depois de 20 min. de vôo eu conheceria o Porto, desceria para Aveiro, para passar uma noite na casa do Rodrigo. De lá eu seguiria para Guimarães, onde o Julio me hospedaria, juntamente com a Célia. Aí eu subiria pruma praia onde tem albergue por 14 euros, desceria pra Guarda, uma cidade perto do parque da Serra da Estrela, caminharia por dois dias, daria um pulo em Coimbra, pra dizer que estive lá, e me encaminharia para Lisboa. Lá eu seria recebida pela Flávia e dormiria na casa do Carlos Aragón, cubano.
De Lisboa eu volatria no dia 18 por Genebra e chegaria na manhãzinha do dia 19 em Amsterdam.

Mas tinha uma árvore no meio do meu caminho.