Ela estava em Texel, Holanda, pedalando uma speed com uma mão só. Não mão direita ela carregava dois quilos de queijo e alguns ovos, na mão esquerda estava o guidão. Ia pela ciclovia, quando cruzou com um holandês que se virou para o seu grupo que vinha atrás e avisou que vinha uma ciclista. Ela freiou. Com uma mão. A roda da frente travou, como era de se esperar, o peso dela foi jogado para a frente, e ela voou sobre a bicicleta para a frente - como era de se esperar. Caiu sobre os dois cotovelos que quebraram. Este foi o último dia de férias.
Frau Kirschke-Ast entrou no nosso quarto num momento ruim. Ela estava com raiva de si mesma, por ter causado o próprio acidente, estava com raiva das enfermeiras alemãs que não estavam em volta dela o tempo todo, como havia sido na Holanda, e estava com pena ou raiva de mim, que chorava aos baldes. Eu tinha voltado da cirurgia, e os nervos bloqueados pela anestesia estavam acordando e me causando dor. Quando fui abrir a boca pra dizer que a minha perna toda tava tremendo de dor, só me saíram lágrimas, e depois disso não consegui mais parar de chorar, soluçar, respirar audivelmente. Aí ainda vieram os meus pais, a injeção contra a dor e pronto, demorei pra me acalmar. Péssimas condições pra Frau Kirschke-Ast se entrosar no quarto em que permaneceria por mais uma semana.
Frau Kirschke-Ast insistia no seu sobrenome completo e corrigia todo mundo que a chamava de Frau Kirschke. Parece coisa de velho, e ela é muito mais velha que parece. Tem 58 anos, está com o corpo nos trinques, tem poucos cabelos brancos, faz afro-dança, yoga, tai-chi e lutou tae kown do por muito tempo. Tem uma filha de 33 anos, um neto de poucos meses, foi politicamente engajada, ocupou casas, militou pela esquerda e hoje é feminista e trabalha num núcleo de proteção à mulher (pelo que entendi, o foco são casos de abuso sexual). Insistia pra que uma mulher a acompanhasse ao banheiro ao invés de Sharam, o enfermeiro turco, e que uma mulher a lavasse às 7 da manhã, ao invés de Klaus, o enfermeiro com escoleose. Pedia comida vegetariana e logo aprendeu que isso é uma das coisas que não se faz em hospital.
Ela foi operada na mesma tarde em que chegou, e passou o primeiro dia completamente dependente. Precisava de alguém que a acompanhasse ao banheiro, que lhe desse comida, lhe coçasse o nariz, que lhe desse água. Mas logo ela percebeu que podia movimentar os dedos da mão e pegar coisas. No segundo dia, dei uma laranja cortada em pedaços, numa tigela pra ela. Lou, schau mal! Olhei. Ela tinha espetado um pedaço de laranja no garfo e estava levando a boca à laranja. Impressionante. No dia seguinte, ela conseguia conduzir coisas pequenas, como cerejas e até as pílulas de todo dia à boca. Já ia sozinha ao banheiro, mas ainda precisava de ajuda embaixo da ducha. No fim, conseguia segurar o telefone e conversar com alguém que não estava ali. Acompanhar os progressos dessa mulher foi uma aventura.
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